terça-feira, 24 de junho de 2014

Reverso

Demorei muito para perceber que eu não era mansa, como todos diziam que eu era. Demorei a entender que eu posso ser, mas dependendo da minha vontade. Demorei muito para começar a me enxergar com meus próprios olhos, sem a intervenção alheia. Demorei a ter uma opinião sobre mim mesma e, agora que as coisas estão se arranjando, que meus pensamentos estão encontrando lugares certos nesta mente confusa, eu não vou desistir de me encontrar. Não vou desistir para te agradar. Se há uma parte em mim que te faz sorrir, ótimo. Mas também há uma face que não vai te agradar. E não há uma face apenas. Pela primeira vez eu vejo que posso ser muitas coisas, posso ser muitos lugares e oportunidades. Posso tomar vários papéis, posso mudar as coisas de lugar. Agora eu vejo que nesta confusão de personagens, não há nenhuma que eu deva calar. E nem quero. Darei a todas as vozes que elas merecem. Que eu mereço. Não me culpo pelas minhas vontades, nem me enalteço. Elas existem e conviverei com elas da maneira que conseguir.

De você, cidadão de bem, só me resta rir. Da sua prisão, da sua não permissão imposta por você mesmo. Diabos reprimidos causam estragos. Para você, o certo está tão longe do errado, não é mesmo? Quem traçou essa linha para você? Quem te disse que não era digna de questionamentos e possibilidades? Enquanto você estufa o peito e se enche de certezas, eu me encho de possibilidades, casas vazias, possíveis sorrisos e gaiolas abertas. Permitir. Você sabe o que é isso? Você já ousou duvidar?


De todas essas coisas, apenas uma certeza. Quem fala agora é uma das minhas faces que não se importa. Uma das minhas preferidas, eu confesso. Mas apenas uma delas. Uma das feições do espelho. Uma das quais eu posso ser. 

Rogo Enrustido

              Estive pensando nas suas doces palavras de alguém equilibrado e que conhece o seu limite. E acredite, elas me tocaram. Apenas por um momento. Até eu poder perceber que elas não passam de uma boa teoria, mas, na prática, as coisas são diferentes, meu caro. Eu não serei hipócrita de compartilhar das mesmas opiniões, de dizem que não me importo e que darei um jeito no futuro porque a vida continua. Eu me importo sim, e me importo porque não quero perder tempo. Não sei o que isso significa para você, sei o que significa para mim e não vou deixar isso perder o valor que lhe é acrescido. Sinto não pensarmos da mesma forma e, por isso, continuarei firme nas minhas opiniões. 
               Se quiser se divertir, que não seja às minhas custas. Invente suas próprias canções e histórias, mas não me inclua nessa sua confusão de palavras dissonantes de atitudes. Você acha que me conhece, que sabe o que quero. Mas não sabe e é facilmente perceptível  no jeito com que fala de mim. Talvez esse seja um dos motivos pelos quais você me subestime (e aqui eu queria dizer que o fato de você me subestimar não me afeta em nada, mas eu estaria mentindo. Afeta. Infelizmente). Se tivesse disponibilidade para olhar um pouco mais profundamente para mim, saberia muita coisa. Você só não sabe porque não quer. Preguiça. E imagina que sabe. 
               Mas saber sobre as pessoas requer mais que observar. Requer tocar, olhar, sentir, ouvir. Você me sente? Acho que não. Você também não me ouve. Talvez porque eu seja pretensiosa demais nas coisas que digo. Talvez. Talvez porque você não tenha mesmo tempo para pensar sobre o que eu digo. Ou talvez por falta de disponibilidade. E é nessas e outras que você perde a oportunidade de saber de mim. E é uma pena essa ideia tão errada que você faz de mim. Esse nosso impasse pode ser o motivo pelo qual nunca seremos plenamente qualquer-coisa. Estamos distantes, você não percebe? Percebe. E faz diferença?
              Se eu pudesse te fazer um pedido, eu não pediria nada. Aliás, pediria uma coisa. Me olhe. Mas tire essas lentes manchadas que você usa para me olhar. Tire essas ideias porque elas estão numa direção contraria à minha. Me olhe em silêncio sem imaginar alguma coisa. Me olhe e diga o que você vê. É arriscado fazer um pedido desses. Se você me olhar desse jeito, verá, inclusos no pacote, os meus defeitos. Os meus maiores defeitos. Mas eu não me importo tanto. Se você parar para me olhar, não temerei a mostrar a você a minha parte mais sombria. E o que isso tem a ver com você, com nós dois? Basta olhar. Basta a disponibilidade e a boa vontade de esquecer as outras coisas para olhar. 

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Se a gente for brincar de depois, me acorde antes do sol nascer. 
Se a gente for brincar de depois, cuide de mim e me dê o que comer. 
Se a gente for brincar de depois, pegue nosso filho nos braços e o faça dormir.
Se a gente for brincar de depois, faça um pé de meia para comprarmos uma televisão.
 Se a gente for brincar de depois, pague o plano de saúde em dia.
Mas se a gente for brincar de agora, me tome nos braços, me beije e não me pergunte o que quero. 
Se a gente for brincar de agora, me imponha a felicidade com a certeza de que a única coisa que a gente possui é o brincar de agora, é o brincar com o agora. 

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012


Crisálida
Há quanto tempo ninguém visita este corpo? E quanto tempo mais continuará sem que ninguém o encontre? Pode parecer estranho, mas a casca é pequena demais para o que existe lá dentro. É pouco, estreito e sombrio. O espírito quer algo a mais, um escapismo, um êxtase consumado, a perpetuação do momento. Paradoxo perfeito que a todo instante se confirma. Há a necessidade de estar junto de outra casca e até de compartilhá-la. Mas por sua própria casca é aprisionada e impedida de desfrutar do infinito. E até onde esta casca é sua? Ela se degrada com o tempo, entristece. O espírito não. Então talvez o problema seja este. Não apenas a vontade de que alguém faça companhia à sua casca, mas à essência também. Alguém que pudesse acompanhar no ato de ser. Pudesse brindar à existência como uma graça, algo suave e desejado. Que pudesse brindar apenas pelo fato de estar junto em qualquer lugar, no infinito, na casca, no momento. 

sábado, 7 de julho de 2012

Ideias


         Escrever um texto é como criar um personagem. Ele começa a desenhar-se livremente, se autoconstruindo. Escrever um texto é deixar as ideias dançando no papel, brincando e dando cambalhotas. É deixa-las discutirem entre si e resolverem qual o melhor destino para a caneta.  Vão criando o ambiente, colorindo os objetos, tocando instrumentos e musicando versos.

             Quando alguém escreve um texto, deixa uma parte sua desenvolver-se sozinha, como um filho. São ideias do autor que tomam uma forma própria. Uma vez no papel, as ideias serão redesenhadas a cada vez que um leitor for visita-lo. O texto então terá várias faces, dependendo de quem o interpreta.

           O autor é apenas um veículo usado pelas ideias para chegarem ao papel. Dali em diante elas vão frequentando outros pensamentos, visitando novas mentes, experimentando novas visões. Não são estáticas. Estão em constante movimento e sempre têm muito a dizer.  Vão viajando pelo mundo, espalhando-se, transformando-se. As ideias são almas, palavras são corpos, então as ideias encarnam-se. Seguem o caminho que bem entendem e constroem o mundo do jeito que querem.  Ideias são quase independentes. São senhoras de si e embriagam quem as tomam.

        Ideias são espíritos livres que vagam pelas esquinas enfeitiçando poetas. Ideias são eternas. São metamorfoses ambulantes. 

sábado, 23 de junho de 2012

Fingida Feição do Espelho


Ela se olhou no espelho e começou a tirar todas aquelas máscaras que cobriam seu verdadeiro rosto. A primeira a ser removida foi a vaidade. Era dentre todas, a máscara mais bonita. Vinha num tom vermelho brilhante, mas era também a mais fina, a mais frágil. 
A segunda máscara se chamava egoísmo. Essa era azul-escuro e foi uma das mais difíceis  de ser tirada, tinha o formato exato de seu rosto.  
A cada máscara que ia tirando, as lágrimas iam escorrendo. Se sentia limpa e livre, como jamais sentira antes. Quanto mais se despia, mais profundo ia. Começava a se conhecer de verdade e pela primeira vez, desde que estreou nesta vida.
Por fim, a última máscara que se arriscava a tirar era o orgulho. Essa impregnava seu rosto. Era preta e a mais grossa. O disfarce começava  a derreter, gerando pingos grandes na pia branca do banheiro. Doía muito se ver livre daquilo. Tirava com cuidado e de vagar, para ir se acostumando. Quando conseguiu terminar, seu rosto estava na carne viva. Mas ela estava bela. Bela como nunca, bela de verdade, nua e crua. Pronta para enfrentar os maiores desafios da vida, sem medo, sem apego, sem posse. Estava tão livre, que poderia até voar. E ali, em frente ao espelho, ela encontrou a felicidade. 

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Realidade Ilusória

Não sei para quem nós apresentamos nosso espetáculo, cenas improváveis, improvisadas.
Fomos nós os nossos próprios espectadores? Provavelmente.
Você ali, fingindo que me convencia e eu convencida e fingida.
Fingi que acreditei  e que você precisava de mim. 
Protagonistas e antagonistas, nos demos as mãos e empurramos com a barriga.
Verdade? Bobagem. 
Me arrependo de não ter vendido ingressos e colocado nossa peça em cartaz.
Lágrimas de frascos, palavras pensadas.
Você me disse o que eu queria ouvir e eu, cheia de satisfação insatisfeita, topei o pacto. 
Procurei interpretar o meu papel com veemência, mas tive que abrir os olhos, afinal.
Me despedi da ilusão que eu ajudei a criar, desci do palco, abandonei as máscaras e o figurino.
Esqueci o texto, cansei das palavras ensaiadas.
Decidi viver minha vida com os pés na realidade. 
Abri os olhos e só agora posso ver que, por causa do orgulho, quase morri 
No espaço entre a loucura e a realidade.